quarta-feira, agosto 30, 2006
Fado do retorno
"Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada
Voltaste, já voltaste
Já entras como sempre
Abrandas os teus passos
E páras no tapete
Então que uma luz arda
E assim o fogo aqueça
Os dedos bem unidos
Movidos pela pressa
Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada
Voltaste, já voltei
Também cheia de pressa
De dar-te, na parede
O beijo que me peças
Então que a sombra agite
E assim a imagem faça
Os rostos de nós dois
Tocados pela graça.
Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada
Amor, o que será
Mais certo que o futuro
Se nele é para habitar
A escolha do mais puro
Já fuma o nosso fumo
Já sobra a nossa manta
Já veio o nosso sono
Fechar-nos a garganta
Então que os cílios olhem
E assim a casa seja
A árvore do Outono
Coberta de cereja."
Lídia Jorge
terça-feira, agosto 29, 2006
Prédica
" Acontece a muitas obras ( e é também o objectivo estrito de certas artes) não conseguirem irradiar outra coisa senão efeitos de intenção primária. Se se demora neles, descobre-se que apenas existem à custa de qualquer inconsequência, de qualquer impossibilidade ou de qualquer prestígio, que um olhar prolongado, ou questões indiscretas, ou uma curiosidade talvez um pouco demasiado desenvolvida poriam em perigo. (...) O público confunde demasiadas vezes a arte da restrita decoração, cujas condições se estabelecem em relação a um lugar bem definido e limitado, e necessitam de uma perspectiva única e de uma certa iluminação, com a arte completa na qual a estrutura, as relações, tornadas sensíveis, da matéria, das formas e das forças são dominates, reconhecíveis a partir de todos os pontos do espaço, e introduzem, de algum modo, na visão, não sei que presença do sentimento da massa, da potência estática, do esforço e dos antagonismos musculares que nos identificam com o edifício, através de uma certa consciência do nosso corpo completo."
Valéry,Paul, Discurso sobre a estética - Poesia e Pensamento abstracto, edições Vega,colecção Passagens 1ªedição, pág.35.
quarta-feira, agosto 23, 2006
Kali decapitada
" (...) idade em que Tudo se funde em Nada, como se esse puro nada que acabava de conceber estremecesse dentro dela à maneira de uma criação fuura.
O Mestre da grande compaixão ergueu a mão para abençoar a caminhante .
- A minha cabeça tão pura foi soldada à infâmia - disse ela. - Quero e não quero, sofro e contudo exulto, tenho horror à vida e terror à morte.
- Todos nós somos incompletos - disse o Sábio. - Todos somos divisão, fragmentos, sombras, fantasmas sem consistência. Todos julgámos chorar e exultar desde há séculos e séculos."
Yourcenar, Marguerite, Contos Orientais - Kali decapitada, Publicações Dom Quixote, 5ª edição Maio de 2002, pág135.
sexta-feira, agosto 11, 2006
Soneto do amor total
"Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude."
Vinicius de Moraes
quarta-feira, agosto 09, 2006
terça-feira, agosto 08, 2006
A paixão
"Felizmente, não teve mau resultado.(..). Paixão foi elemento que nele não entou.
- Como é que sabe?
- A paixão não mede as consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se é que interpretei bem, queria dizer que, quando a paixão se apodera de um coração, esta inventa, para provar que pelo amor todo o sacrifício é pouco, razões não somente palusíveis, mas elucidativas. Ficamos convencidos de que vale a pena aceitar a desonra, e que a vergonha não é preço exagerado para se pagar por ele."
Maugham, W.Somerset, O fio da navalha, Edição « Livros do Brasil» Lisboa, Janeiro de 2000, pág.150.
quarta-feira, agosto 02, 2006
Hypomnemata
"O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constitui, "um corpo" (quicquid lectione collectum est, stilus redigat in copus). E, este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim (...) como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fêz sua respectiva verdade : a escrita transforma a coisa vista ou ouvida " em forças e em sangue" ( in vires, in sanguinem.). Ela transforma-se, no próprio escritor, num principio de acção racional."
Foucault, Michel, Oque é um autor?, Editora Vega, colecção Passagens, 4ª Edição, pág.143.
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